quinta-feira, 17 de novembro de 2011

Por trás da polêmica do IDEB

A ideia de Gustavo Ioschpe de tornar obrigatório afixar no portão de entrada das escolas os resultados do Índice de Desenvolvimento da Educação Básica, o IDEB, tornou-se perigosa porque foi encampada por três projetos de lei apresentados na Câmara dos Deputados. O próprio MEC alertou no início da tramitação que tais projetos eram constrangedores para as escolas, e é consenso entre os órgãos de classe, como a Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE), que há inúmeros problemas nas escolas brasileiras que independem do esforço dos professores e que afetam o processo de ensino – como as condições das instalações, a falta de energia elétrica e água em escolas rurais, etc. A conclusão é que a proposta do economista cobra dos profissionais de ensino o que deve ser responsabilidade do Estado, estabelece uma competição desnecessária entre as instituições educacionais, aumenta o estresse profissional de professores e reduz a autoestima de alunos. Se a proposta vencer, será praticada uma violência simbólica contra a escola: ela será jogada, de uma vez por todas, ao sabor da ideologia pura de mercado, ao ser submetida ao princípio da competição, cujo efeito é reduzir a autonomia escolar, substituir a defesa do desenvolvimento integral do aluno pela busca de indicadores baseados em dados quantitativos – e não qualitativos – e na gestão de recursos financeiros.
O que está por trás dessa discussão? O pressuposto de Ioschpe é que teorias e métodos econômicos podem ser aplicados à educação. É o que faz em sua obra “A ignorância custa um mundo” (ed. Francis, 2004), na qual defende a analogia entre produtividade física do capital e educação. Defende, entre outras ideias, que “basta imaginar que a escola é uma instituição especializada na produção de treinamento” (p.33) e que “os princípios da economia também se aplicam ao 'mercado' da educação” (p.152). Mais grave, o autor propõe uma reforma do ensino brasileiro baseada, entre outras coisas, no “fim da gratuidade do ensino público universitário” (p.231, grifo meu) e no ”fim do desconto no IR para gastos com educação” (p.243). Para mim, a “economia da educação” de Ioschpe é o mais puro pensamento de direita, na qual a economia, a defesa de índices, o mercado e o liberalismo são o remédio pronto para a solução de todos os males da educação. É nela que se fundamenta a defesa da afixação do IDEB nas fachadas das escolas. Em “Rumo ao Abismo” (Bertrand Brasil, 2011), Edgar Morin mostra o quanto esse paradigma é equivocado quando se trata da educação. Para Morin, "a ciência econômica, ao mesmo tempo em que é a ciência social matematicamente mais avançada, é a ciência social humanamente mais retrógrada”, pois “se abstraiu das condições sociais, históricas, políticas, psicológicas, ecológicas, inseparáveis das atividades econômicas” (Morin, p.48). A afixação do índice do IDEB na fachada das escolas é o simulacro perverso e deformador desse universo econômico. O indicador aliena porque compartimentaliza, separa e isola aquilo que os educadores veem de forma interdependente: as condições de produção do trabalho escolar. Sua falsa racionalidade baseia-se num mecanismo ideológico elementar: a tentação do sentido. Diante dos terríveis problemas educacionais que vivemos hoje, a valorização de indicadores surge como portador de sentido, mas esconde por trás uma perversa lógica econômica baseada na defesa da competição. A ilusão vendida por Ioschpe é que, se indicadores servem para economistas, devem servir para os profissionais do ensino. Nada mais perverso, porque o que ele não diz é que a economia capitalista não é um mundo equilibrado, ao contrário, é um mundo repleto de catástrofes no qual os problemas da educação são justamente um de seus produtos.
Sua posição não poderia ser diferente: está inscrita em seu DNA. Filho de conhecido empresário, é acionista da Ioschpe-Maxiom, companhia fundada em 1918 que se expandiu do ramo madeireiro para o setor financeiro e industrial, chegando a lucros de 58,597 milhões no terceiro trimestre de 2010. Quer dizer, faz parte do habitus (Pierre Bourdieu) dele a incorporação em seu modo de agir, sentir e pensar do modo de ser de sua classe social, a classe dominante. Procurei em vão na internet informações sobre sua experiência como professor de escola pública e não encontrei nada – repito nada! - que o qualifique como tal. A pergunta que não quer calar é: como pode alguém que não teve a experiência de sala de aula dizer que é melhor para os professores que o IDEB seja afixado na fachada de sua escola? Mais: como pode sugerir que instrumentos da economia sejam orientadores para a educação? A minha resposta é: não pode. É necessária a experiência de professor para sugerir caminhos para a educação, e a "economia da educação" nada mais é do que ópio para as massas, e a defesa de indicadores, mitificação ideológica . É como se dissesse: “educador, não te metas com a verdade dos índices porque eles são a nossa verdadeira natureza”. No universo de Ioschpe não existem nem pessoas nem contradições, apenas fórmulas matemáticas: “[...] minhas pesquisas e conclusões são respaldadas por números e estatísticas” (A Ignorância... p.14). Diz o filósofo Slavoj Zizek: “O difícil é encontrar poesia e espiritualidade nessa dimensão”.
Ora, além de ser moralmente errado aplicarem-se conceitos de investimento e capital às pessoas, há o risco de indicadores como o IDEB serem utilizados de forma inadequada nas decisões de políticas educacionais. Se os governos levarem em consideração somente os valores apontados no índice, as contribuições e as análises culturais da educação não serão consideradas. Isso é terrível. A educação tem um papel econômico, é claro, mas não a ponto de perdemos as referências às questões sociais de base que tratam, justamente, da crítica às condições de reprodução da escola no interior do capitalismo. Ioschpe defende a ideia de afixar o índice do IDEB na fachada das escolas como seu gesto de amor para defender a educação, mas seu verdadeiro amor é o Capital e seu pensamento, ideologia a serviço da servidão.
Publicado no Jornal da Universidade (UFRGS)
 
 

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